sábado, 26 de março de 2011

Queda.

Existe um ponto fixo onde dois lados se encontram, se comunicam e se abandonam, e foi em um desses ponto onde ele se encontrava em pé. Exatamente no limite entre dois lados. Naquele momento tudo se tratava de um trio, mesmo o terceiro elemento não se mostrando fisicamente. Uma corrente de ar veio de uma das direções, esquecendo de fazer a curva e seguir o seu caminho, se perdendo em ar aberto, sem uma direção, deixando de existir a cada metro que avançava. A visão era percebida em vários ângulos, enquanto se dirigia para frente, via os lados com clareza, com mais clareza até mesmo que se estivesse em foco. Na frente só havia uma fogueira. Com suas chamas cada vez maiores, ia iluminando ao seu redor, no mesmo momento em que uma fumaça cada vez mais densa começava a se desprender daqueles braços flamejantes. Ele não via com tanta clareza através da densa névoa que tomou conta de todas as suas visões, ele não se enxergava mais. Era como se uma consciência estivesse acordava, apenas ela, percebendo um mundo que não podia explicar, não podia entender, não podia agir. Existia e só. Aquilo incomodou de certo modo, que as chamas pareciam ser a única resposta, mesmo que apenas instintiva. Como se um mergulho naquele mar vivo e inquieto pudesse limpar-lhe a visão. Pedia uma submersão, sentia vontade de buscar o fundo sem pressa, cair em um abismo de calor inumano onde deslizasse de forma ardente, deixando seu corpo sentir e doer o quanto precisasse. Era como se a dor fosse necessária naquela descida, como um amparo, dizendo que aquela seria a pior parte, e logo depois, com o fundo uma vez alcançado, a recompensa chegaria. Não era um problema descer tranquilamente acompanhado da dor. Era uma escolha, mesmo que instintiva, e naquele momento estava claro que escolhas não doíam, a ausência delas sim. E era isso que ele mais temia, sentir a dor da ausência da escolha. Já que o abismo só faria sentido se fosse fruto de uma escolha. Um pulo era a única coisa necessária naquele momento, a névoa começava a se dissipar, deixando o ar cada vez mais limpo, as narinas já estavam voltando à vida, lentamente iam sugando aquele ar cada vez menos denso. Um deslize adiantou o pulo, o ar o sugou por inteiro, como se pedisse vingança por ser parte dele, como se finalmente fosse atrás de um direito seu a muito posto em segundo plano. A queda foi suave, lenta, quente. Ele não tinha pressa, estava vivendo a sua escolha, e a dor era nada mais que uma música percorrendo sua pele. Caiu. Sentiu a grama fria tocar seus pés, o frio cauterizou as feridas e ele sentiu por fim o sentido que procurou naquela queda. Ele era o fogo.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Lembranças.

Eram pouco mais de dez horas da manhã. Ele percebeu os sentidos voltarem ao corpo lentamente logo após a consciência ganhar vida novamente. Ficou deitado, imóvel, acolhendo aquela sensação como se nunca a tivesse sentido antes, os olhos permaneceram fechados, deixou que os outros sentidos fizessem o trabalho. Percebeu um barulho do outro lado da parede. Era chuva, tranquila e fina, mas fria, e ele não sabia perceber essa ligação metafísica, mas era como se seu corpo sentisse finos pingos gélidos uma vez ou outra. Chegou a pensar que talvez foi isso que interrompeu seu sono, mas também percebeu que fora uma das melhores maneiras para se acordar naquele dia. Sentiu um vento frio, quase imperceptível, apenas o necessário para se encolher e manter o calor que havia produzido e conservado durante a noite. Abriu os olhos. As cores do quarto estavam leves, por assim dizer. A cama estava ficando desconfortável, ou talvez ele era quem a estava rejeitando. A porta do quarto foi aberta. Tudo o que existia do outro lado era o silêncio. Silêncio esse que trouxe de volta memórias que ele julgava ter esquecido, julgava não ser mais necessário lembrar. E isso foi um engano que doeu, doeu como quando nos sentimos culpados por termos feito algo sem intenção, mas que sabemos não ser o certo. E essa dor estava por todos os lados. Cada objeto com sua lembrança. As paredes sussurravam entre si, como que comentando aquela falha grave. Talvez o incômodo tenha surgido para pedir que ele não vá muito longe, ou talvez foi justamente o oposto, para que mesmo quando a distância estiver incontável, às lembranças fiquem com ele, façam parte dele. Aquela sensação logo foi ficando cada vez mais suave e lenta, mas ele também aceitou isso, parecia que não era dia de fazer perguntas, algo que ele pensou não ser capaz. Lembrou-se do sonho que tivera há pouco, ou melhor, dos sonhos. Um após o outro, pessoas trocando de forma, passando a ser outra, com o significado da anterior, terminando em um abraço, lento e necessário. No fim, ele aceitou que as lembranças entrassem novamente, sem bater, só entrassem, que cada uma ocupasse o lugar que melhor lhe agradasse, se instalando ali, a única coisa que pediu foi para que não doessem, já que, a tênue linha entre a dor e a as lembranças está em como elas resolvem despertar.